Recentemente foi elaborado um relatório sobre “A Ciência em Portugal“. Este relatório foi entregue na AR, à Comissão de Educação e Ciência. Destaco o capítulo que fala de “Carreiras e Oportunidades de Trabalho Científico – Factores Condicionantes, Obstáculos e Sugestões… ou A defesa da competência, do mérito, da responsabilidade e da ética“.
Este capítulo foi coordenado pelo José António Salcedo (CEO da Multiwave Photonics), um especialista nesta matéria, pelo qual tenho imenso respeito e consideração. Deixo abaixo alguns excertos, mas aconselho vivamente a leitura integral do documento. Desejo também, que os deputados da Comissão de Educação e Ciência o tenham lido com atenção, e façam algo para aproveitar este trabalho.
“Os programas doutorais estão orientados para formar investigadores e não cidadãos particularmente bem habilitados a criar valor na sociedade em actividades profissionais diversas através do exercício da sua autonomia intelectual e capacidade de pensar, modelar e propor soluções […] Tal contribui para que a sociedade e as suas instituições – empresas em particular – tenham dificuldade em compreender o potencial de criação de valor que um doutorado pode aportar.”
“Os programas doutorais são omissos quanto ao desenvolvimento de competências e capacidades importantes para uma vida profissional bem conseguida […] Podem apontar-se as seguintes: Pensamento crítico – Análise; Visão estratégica – Síntese; Trabalho e avaliação – Mérito; Equipas e comunicação – Coaching; Responsabilidade e ética – Cidadania […] Pessoas que disponham das competências anteriormente referidas estarão em posição privilegiada para criar valor em qualquer sociedade e para assumir um papel de liderança na sua transformação.”
“No que respeita a comportamentos, os programas doutorais vigentes não desenvolvem nos doutorandos atitudes […] quer para que encontrem oportunidades de trabalho, quer para que estejam habilitados a criar a sua própria oportunidade de trabalho […] Como exemplo […] indicam-se a valorização preferencial da capacidade de pensamento crítico em detrimento da especialidade científica adquirida, o gosto em assumir responsabilidades pela equação e resolução de problemas, o gosto em constituir e liderar equipas em projectos concretos em que os resultados a alcançar são essenciais, a aceitação da avaliação nua e crua dos resultados conseguidos como forma mais correcta para melhorar, a humildade de compreender que existem muitos saberes importantes na vida para além do científico e que muitos desses saberes são implícitos e resultam da experiência, a importância crescente de saber viver e trabalhar em ambientes multi-culturais assim como o gosto por assumir riscos para procurar construir o futuro que cada pessoa gostaria de ter”
“Ocorre frequentemente um desalinhamento de expectativas entre um doutorado e uma instituição que o acolhe […] um doutorado cria expectativas salariais e/ou de enquadramento profissional que não encontram eco na sociedade e nas suas instituições, assim como uma sociedade que é pouco instruída desenvolverá naturalmente aversão a enquadrar um doutorado num contexto profissional quer for factores salariais, quer por outros, sejam técnicos ou comportamentais.”
“A melhor forma de corrigir este desalinhamento é promover mecanismos de comunicação entre instituições de formação doutoral e do mercado de trabalho […] a circulação temporária de pessoas entre as várias instituições […] as universidades deveriam valorizar sabáticas em empresas ou na administração pública, assim como quadros de empresas ou da administração pública deveriam ser estimulados a leccionar ou estagiar periodicamente em universidades ou instituições de I&D.”
“Pretende-se assegurar um grau superior de desenvolvimento do País através da incorporação na sociedade de pessoas habilitadas com conhecimento científico […] O grau de desenvolvimento e riqueza de uma sociedade vem determinado pela capacidade dessa sociedade em criar valor, e o valor criado aumenta quando se constrói através da exploração de conhecimento. A expressão inovação significa precisamente criação de valor através da exploração económica de conhecimento.”
“…em Portugal […] o processo educativo vigente não contribui para o seu desenvolvimento, possivelmente antes pelo contrário, nem a sociedade ou as suas instituições, começando pela administração pública, as valoriza de forma regular […] igualar diplomas do 12º ano do ensino regular com diplomas das Novas Oportunidades – sem aprendizagem de competências profissionais – é um sintoma de total desrespeito pelo valor do trabalho e do mérito e seria inadmissível em sociedades mais desenvolvidas, nas quais educação é encarada com seriedade e tida como factor importante para o desenvolvimento.”
“Em Portugal […] o sistema público não valoriza particularmente pensamento crítico, visão estratégica, trabalho e avaliação, equipas e comunicação, responsabilidade e ética, nem avalia e premeia o mérito de forma isenta, regular e sistemática. Uma das principais razões é que o actual modelo de Estado está errado, porque centraliza excessivamente todos os processos decisórios, estimulando a desresponsabilização das pessoas e das instituições.”
“Não resultaria prejuízo significativo se o Estado tivesse um peso reduzido na sociedade e na economia; infelizmente tal não ocorre, pelo que as competências e as atitudes estimuladas pelo Estado acabam por ter uma influência determinante na sociedade, nas suas instituições e na forma como elas operam […] as inúmeras nomeações políticas de pessoas sem qualificações nem competências profissionais para exercer cargos de elevada influência na administração pública, no sector empresarial do Estado e nas instituições que sucessivos governos têm criado.”
“Ao adoptar critérios permissivos para muitas das suas iniciativas, o Estado está a passar à sociedade a mensagem de que não é necessário trabalhar para desenvolver competências ou ter mérito, nem assumir responsabilidades bem reais se queremos ter uma vida melhor – o que será necessário é ter contactos apropriados […] situações deste tipo adulteram competição e dificultam inovação e, a médio prazo, prejudicam a cidadania e a própria democracia.”
“Um doutorado, em princípio, estaria em condições intelectuais ideais para corresponder ao perfil de competências que fossem mais valorizadas pelo mercado de trabalho. No entanto, é raro tal suceder. No ambiente protegido e tranquilo das academias nacionais, os desafios, as tensões e os paradoxos de uma vida empresarial não se fazem sentir com dinamismo. Por outro lado, pessoas que concluem um grau de doutoramento não adquiriram em geral competências organizativas, de gestão ou sequer relacionais e de liderança, pelo que sentem dificuldades naturais em ser atraídas por ambientes em que o cumprimento de prazos e objectivos seja exigido e avaliado, com os resultados da avaliação produzindo consequências reais e imediatas, assim como seja esperada a constituição e liderança de equipas capazes de abordar e resolver problemas com eficácia.”
“Enquadrar doutorados em PME é um desafio grande, porque do lado das PME existem igualmente questões de natureza fundamental que dificultam o enquadramento profissional de pessoas com competências científicas. Frequentemente PME são empresas de origem familiar e com predominância da função comercial, e estão assentes numa lógica pouco orientada para a tecnologia, em que existem frequentemente limitações sérias em termos de conhecimento científico, capacidade financeira, de organização e de gestão.”
“Frequentemente, uma PME nacional é avessa culturalmente à introdução na sua estrutura de uma pessoa habilitada com conhecimentos científicos, porque os líderes empresariais desse tipo de empresas raramente as têm. Existe assim e logo à partida um desalinhamento cultural – e uma desconfiança – que fica agravado se o doutorado não tiver atitudes que o empresário seja capaz de sentir como próximas das suas e que mais valoriza.”