Em Portugal é tradição beatificar qualquer figura pública que morra. Pode, em vida, ter sido o pior exemplo do ser humano, o mais arrogante, o maior corrupto, etc. Mas a partir do momento que morre, passa automaticamente a ser a melhor pessoa do mundo. E criticá-lo é blasfémia. Assim sendo, vou aproveitar que Mário Soares ainda está vivo para escrever este texto.
Respeitava muito Mário Soares pelo papel que, bem ou mal, desempenhou na construção da democracia portuguesa. No entanto, ao contrário de outros, nunca lhe coloquei o epíteto de “Pai da democracia”. Foi uma das figuras importantes (a par de Sá Carneiro, Freitas do Amaral, Álvaro Cunhal entre muitos outros), mas esteve longe de ser o principal ou único responsável.
Em 1996, Mário Soares terminou o seu segundo mandato de PR e podia ter-se retirado. Mas o bichinho da política, o amor pelo partido, e a consciência de que ainda era capaz, fê-lo rumar a Bruxelas em 2000. Na altura achei bem, porque a sua experiência e conhecimento podiam contribuir para a construção europeia e para a defesa de Portugal na UE.
Em 2005 com 81 anos parecia ter tomado a decisão correcta e sensata de se retirar, anunciando que abandonava definitivamente a política. Tinha sido um percurso brilhante ocupando o cargo de Ministro, Primeiro-Ministro, Presidente da República e Deputado Europeu. Retirava-se um homem que teria contribuido imenso para a construção do país.
Ele, melhor do que muitos, deveria saber que em política (como na vida) tudo tem o seu tempo. Pelo percurso que teve, deveria ter aprendido que os grandes homens da história souberam saír na altura certa. Saber o timming para se retirar da política e dar lugar aos mais novos é algo essencial para se saír pela porta grande.
Infelizmente, para ele e para os portugueses, Mário Soares não soube, não quis, ou não pôde sair. E os últimos anos – marcados pela avançada idade – foram catastróficos. Várias vezes me perguntei se ele não teria filhos em casa que lhe pedissem para se abster. Depois pensei melhor e realizei que, sem o papá na ribalta, os filhos seriam ninguém.
E também não é menos verdade que o PS nunca se conseguiu libertar das amarras e da teia (o termo é apropriado) de Mário Soares. Sempre fez o que quis. Até considerar Sócrates “o pior do guterrismo” e depois dizer que foi “um Primeiro-Ministro exemplar”. Deixou a liderança do PS em 1986, mas desde aí liderou sempre oficiosamente. Manietando Almeida Santos, António Guterres, Ferro Rodrigues, José Sócrates, AJ Seguro e, mesmo com 90 anos, António Costa.
A re-candidatura à Presidência da República em 2006 foi só o início da desgraça política Soarista dos últimos anos, marcada por falta de memória, discernimento, bom senso, prudência, sentido de Estado, responsabilidade, ou mesmo, e muitas vezes, vergonha na cara. Basta lembrar as críticas que fez a Passos Coelho e ao Governo PSD/CDS por estes cumprirem o MoU.
Mário Soares acusou o Governo e o Primeiro-Ministro de estarem demasiado presos ao acordo da Troika, esquecendo-se que, como disse Camilo Lourenço “não houve período em que Portugal tenha sido mais subserviente para com o FMI do que em 83-85, quando Soares, então primeiro-ministro, recorreu a ajuda externa”.
Isto, depois de em Fevereiro 2012 se ter vangloriado de forçar José Sócrates a pedir apoio ao FMI. “Tive uma discussão com ele gravíssima, porque queria que ele pedisse o apoio e ele não queria. Falei muito com ele durante muito tempo, duas horas ou três, discutimos brutalmente mas amigavelmente, eu a convencê-lo e ele a não estar convencido”.
Escusado será dizer que meses mais tarde, em Maio 2012, a opinião mudava outra vez. Soares dizia que o MoU tinha sido assinado por José Sócrates (como se o PM não estivesse a assinar o MoU em nome do país) e nessa medida o PS teria sido obrigado a aceitá-lo. Mas com a eleição de Hollande e AJ Seguro (note-se onde estes já vão) o “mundo mudou” e portanto a obrigação de cumprir o MoU teria chegado ao fim.
Mas há mais. Em Junho 2013, num comício organizado pela esquerda-caviar de Lisboa, juntamente com muitos bloquistas e afins, Mário Soares para além de quebrar todas as regras da ética e da democracia, quebra também o artigo 46º da Constituição, apelando à revolta popular e à violência para destituir o Governo PSD/CDS eleito com maioria apenas dois anos antes.
Por falar em regras democráticas, lembrar também como, no dia das eleições Autárquicas 2005, ao lado da mesa de voto, Soares apelou ao voto no seu filho. Violando portanto o artigo 177º da Lei Eleitoral, que proíbe que no dia da eleição seja feito um apelo ao voto. Violação essa que é punida com pena de prisão até 6 meses. Isto depois de ter feito o mesmo nas eleições Legislativas.
Mais inofensivos, mas ainda assim graves, foram outros episódios. Alguns bem recentes. Como o da multa por excesso de velocidade que o levou a dizer ao polícia “o Estado é que vai pagar a multa”; o do encontro com Isaltino Morais, depois de este ter sido condenado a prisão, onde o caracterizou como “um grande presidente de câmara, que foi injustiçado“.
Muitos pensarão que estes episódios e histórias são fruto da idade avançada. Que Mário Soares está, como muitos (incluindo eu) já disseram, chéché. A verdade é que basta recordar tudo o que Soares, sua família e amigos, fizeram para rapidamente se concluir que nada disto é por acaso, e que estamos na presença de um mau exemplo de homem e político.
Durante o Estado Novo, enquanto outros lutavam contra o regime, e pela democracia, em Portugal, Soares exilou-se em Paris, frequentando hóteis e restaurantes de luxo à custa não se sabe bem de quem (onde é que eu já vi isto?). Voltou como herói depois do 25 Abril 74 e tomou conta da ocorrência, sendo um dos responsáveis pelo processo de descolonização, durante o qual o filho João Soares quase morre, num avião cheio de diamantes.
Depois de duas passagens pela liderança do Governo, marcadas pelo fracasso e pela vinda do FMI para salvar Portugal, candidatou-se a Presidente da República e depois de vencer as eleições, fundou a Emaudio onde os seus testas de ferro geriram vários negócios milionários pouco transparantes, como por exemplo o do aeroporto de Macau. Onde estava envolvido o Governador de Macau, Carlos Melancia, nomeado por Soares.
Depois da Emaudio lhe ter financiado a re-candidatura presidencial em 1991, foi a Fundação que lhe financiou a vida pós-presidencial, e para a qual levou valiosos documentos e presentes que recebeu oficialmente enquanto Presidente, e que deveriam ter ficado na Presidência. Isto depois de ter dado o equivalente a 22 voltas ao mundo como Chefe de Estado, batendo recordes de visitas.
Como ex-Presidente, para além de todas as mordomias a que tem direito por lei (carro, motorista, reforma milionária, escritório) continuou a receber subvenções e subsídios de milhões, através da Fundação (à qual não se conhece nenhuma função) oferecidos pelos seu filho e seus companheiros de partido no Governo, na CM Lisboa e até mesmo na CM Leiria.
Fundação essa que foi construída num lugar nobre de Lisboa (em frente à Assembleia da República) violando o PDM, e depois de o IGAT ter anulado a licença de obra. Curiosamente o relatório do IGAT e demais documentos sobre o assunto desapareram da CM Lisboa quando o PS (incluindo o filho João Soares) a lideraram.
E ai de quem se atrevesse a tocar nestes assuntos. José António Cerejo (no jornal Público, liderado por José Manuel Fernandes) foi silenciado depois de ter começado a investigar. Joaquim Vieira (na revista Grande Reportagem, detida pela Controlinveste) foi despedido depois de ter feito uma reportagem sobre o livro de Rui Mateus.
Resumindo e concluindo, beatifiquem quem quiserem. Ainda em vida, ou depois de morto. A verdade é que Mário Soares fez muito mais mal do que bem. Ou melhor, o mal que fez, apagou o bem que terá feito. Mas o país que santifica políticos como este, merece ser liderado por eles. Até ao fim da IIIª República.
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